3vezes3: O lado sombrio da lua. Aquela que cria & Aquele que dança. Este Blog é uma expressão dos pensamentos mágicos perdidos na névoa virtual.

terça-feira, 8 de março de 2011

Você ainda quer viver carregando este peso?


Você ainda quer carregar esta cruz?

Aset

domingo, 26 de dezembro de 2010

Feliz Natal? - Um estudo sobre as comemorações do Solstício de Inverno


Feliz Natal?
 - 
Um estudo sobre as comemorações
do Solstício de Inverno.


Roma, Musei Vaticani: Roman Mithras, described as sol invictus

The image is a standard one of Mithras killing the bull in the Tauroctony.
This image is relatively simple and omits many elements found in other depictions. The killing takes place in a cavern.
Top left is Sol, recognisable by his flaming crown. Top right is Luna.



A palavra 'natal' do português já foi 'nātālis' no latim, derivada do verbo 'nāscor' (nāsceris, nāscī, nātus sum) que tem sentido de nascer. De 'nātālis' do latim, evoluiram também 'natale' do italiano, 'noël' do francês, 'nadal' do catalão, 'natal' do castelhano, sendo que a palavra 'natal' do castelhano tem sido progressivamente substituída por 'navidad' como nome do dia religioso.

A data de comemoração do Natal não é conhecida como o aniversário real de Jesus e pode ter sido inicialmente escolhida para corresponder com festival histórico Romano Saturnália[1] e com o solstício de inverno.[2]







As principais comemorações do Soltício de Inverno em diversas culturas por seéculos acabaram por caracterizar o dia 25 de dezembro como:


  • Mitologia celta - A Mãe Terra dá à luz a "criança Sol", que viria para anunciar um novo tempo.
  • Grécia antiga - comemoração do nascimento de Dionísio, deus do êxtase e do vinho.
  • Egito antigo - comemoração do nascimento de Horus, deus do Sol.
  • Índia antiga - comemoração do nascimento de Krishna.
  • Pérsia antiga - comemoração do nascimento de Mithras.

e por último na história:

  • Para os católicos, ortodoxos e protestantes, Natal, celebração do nascimento de Cristo;


Segundo certos eruditos, o dia 25 de dezembro foi adotado, para que a data coincidisse com a festividade romana dedicada ao "nascimento do deus sol invencível", que comemorava o solstício de inverno.


Les Saturnales - Antoine-François Callet


No mundo romano, a Saturnália, festividade em honra ao deus Saturno, era comemorada de 17 a 23 de dezembro; era um período de alegria e troca de presentes, grandes banquetes, sacrifícios, às vezes orgias; os participantes tinham o hábito de saudar-se com io Saturnalia, acompanhado por doações simbólicas. Durante estes festejamentos vinha subvertida a ordem social: os escravos podiam considerar-se temporariamente homens livres, e como tal podiam comportar-se; vinha eleito, a sorte, um princeps - uma espécie de caricatura da classe nobre - a quem se entregava todo o poder. O dia 25 de dezembro era tido também como o do nascimento do misterioso deus persa Mitra, o Sol da Virtude.


A descaracterização de uma celebração no Império Romano


Constantino I, também conhecido como Constantino Magno ou Constantino, o Grande (em latim Flavius Valerius Constantinus; Naissus, 272 — 22 de maio de 337), foi um imperador romano, proclamado augusto pelas suas tropas em 25 de julho de 306 e governou uma porção crescente do Império Romano até a sua morte.

O fato de Constantino ser um imperador de legitimidade duvidosa foi algo que sempre influiu nas suas preocupações religiosas e ideológicas: Primeiramente, ele apresentou-se como o protegido de Hércules, deus que havia sido apresentado como padroeiro de Maximiano na primeira tetrarquia; ao romper com seu sogro e eliminá-lo, Constantino passou a colocar-se sob a proteção da divindade padroeira dos imperadores-soldados do século anterior, Deus Sol Invicto, e por último, após a sua vitória sobre Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvio, em 28 de outubro de 312, perto de Roma, que ele mais tarde atribuiu ao Deus cristão, professou o Cristianismo. Assim, entrando na história como o primeiro imperador a professar o cristianismo.

Invictus (invicto) era um epíteto usado para várias divindades romanas no Império Romano. No calendário romano do início do Império incluem-se Júpiter Invictus e Marte Invictus. Este epíteto foi usado a partir da República tardia e ao longo do período Imperial para uma série de divindades, como Hércules, Apolo e Silvano[ 8 ],  e, também, de uma forma bem-estabelecida quando aplicado a Mitra por devotos romanos a partir do século II.

Assim, em vez de proibir as festividades pagãs, forneceu-lhes um novo significado, e uma linguagem cristã. As alusões dos padres da igreja ao simbolismo de Cristo como "o sol de justiça" (Malaquias 4:2) e a "luz do mundo" (João 8:12) revelam a fé da Igreja n'Aquele que é Deus feito homem para nossa salvação.

Segundo a Enciclopédia Católica (edição de 1911):
"A festa do Natal não estava incluída entre as primeiras festividades da Igreja ... os primeiros indícios dela são provenientes do Egito ... os costumes pagãos relacionados ao inicio do ano se concentram na festa do Natal".

Na mesma enciclopédia encontramos que Orígenes, um dos chamados pais da Igreja, reconheceu a seguinte verdade :
" ... não vemos nas Escrituras alguém que haja celebrado uma festa ou um grande banquete no dia do seu natalício. Somente os pecadores (como Faraó e Herodes) celebraram com grande regozijo o dia em que nasceram nesse mundo".

A Enciclopédia Britânica (edição de 1946) diz:
"O Natal não constava entre as antigas festividades da Igreja ... Não foi instituída por Jesus Cristo nem pelos apóstolos, nem pela autoridade bíblica. Foi tomada mais tarde do paganismo".

A Enciclopédia Americana (edição de 1944) diz :
"O Natal de acordo com muitas autoridades, não se celebrou nos primeiros séculos da Igreja Cristã. O costume do cristianismo não era celebrar o nascimento de Jesus Cristo , mas sua morte . ( A comunhão instituída por Jesus no Novo Testamento é uma comemoração da Sua morte).

Em memória do nascimento de Cristo se instituiu uma festa no século IV. No século V , a Igreja Oriental deu ordem de que fosse celebrada para sempre, e no mesmo dia da antiga festividade romana em honra ao nascimento do deus Sol , já que não se conhecia a data exata do nascimento de Cristo".

The New Shaff-Herzog Enciclopedia of Religious Knowkwdge (A Nova Enciclopédia de Conhecimento Religioso de Schaff-Herzog) explica claramente em seu artigo sobre o Natal:
"Não se pode determinar com precisão até que ponto a data desta festividade teve sua origem na paga Brumália (25 de dezembro), que seguiu a Saturnália ( 17 a 24 de dezembro ) e comemora o dia mais curto do ano e o nascimento do deus sol. As festividades pagãs de Saturnália a Brumália estava demasiadamente arraigadas aos costumes populares para serem suprimidas pela influencia crista. Estas festas agradavam tanto que os cristãos viram com simpatia uma desculpa para continuar celebrando-as sem maiores mudanças no espírito e na forma de sua observância. Pregadores cristãos do ocidente e do oriente próximo protestaram contra a frivolidade indecorosa com que se celebrava o nascimento de Cristo, enquanto os cristãos da Mesopotamia acusavam os seus irmãos orientais de idolatria e culto ao sol por aceitar como cristã essa festividade pagã".

Tomemos nota deste fato importante. Estas autoridades históricas demonstram que durante os três primeiros séculos da nossa era, os cristãos não celebraram o Natal. Esta festa foi introduzida na Igreja Romana no século IV e, somente no século V, estabelecida oficialmente como festa cristã.

Neste processo a Igreja se "paganizou" e o mundo se "cristianizou"






Notas:
[1] Newton, Isaac, Observations on the Prophecies of Daniel, and the Apocalypse of St. John (1733). Ch. XI. A sun connection is possible because Christians consider Jesus to be the "sun of righteousness" prophesied in Malachi 4:2.
[2] The Christmas Season. CRI / Voice, Institute. Página visitada em 2008-12-25.
[3] http://www.netgospel.com.br/php/artigos/view.php?codigo=333&secao=17&colunista=19
[4] http://pt.wikipedia.org
[5] A verdade sobre o natal - Mauro C. Graner (Notas Bibliográficas da Enciclopédia Católica)
[7] http://pt.wikipedia.org/wiki/Constantino_I
[8] Hijmans, "The sun which did not rise in the east", p.124: Hercules lnvictus is also mentioned on coins, and on inscriptions he is almost as popular as Sol Invicnts. Other invicti on inscriptions include Jupiter, Mercurius, Satumus and Silvanus.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Uma Bebida Lunar

Família belga produz cerveja 


fermentada pela luz da lua cheia


Processo de fermentação seria abreviado de 7 para 5 dias.
Plano da cervejaria Caulier é produzir 12 mil garrafas da ‘Paix-Dieu’.


Fermentação com luz da lua cheia foi 'mais rigorosa', explicou dono da cervejaria belga

Fermentação com luz da lua cheia foi 'mais rigorosa', explicou dono da cervejaria belga (Foto: Thierry Roge / Reuters)

Uma cervejaria familiar de Peruwelz, no sul da Bélgica, anunciou ter produzido a primeira cerveja do mundo fermentada pela luz da lua cheia. “Fizemos vários testes e percebemos que a fermentação foi mais rigorosa, mais ativa”, explicou Roger Caulier, proprietário da Cervejaria Caulier, fundada por seu avô em 1930. “O produto final foi completamente diferente, mais forte, com um sabor que perdura por mais tempo na boca”, disse.
A lua cheia aceleraria o processo de fermentação, abreviando-a de sete para cinco dias. A cervejaria, que emprega métodos desenvolvidos em 1840 e é conhecida por suas cervejas artesanais, planeja produzir cerca de 12 mil garrafas da “cerveja da lua cheia”, chamada de Paix-Dieu.
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2010/09/familia-belga-produz-cerveja-fermentada-pela-luz-da-lua-cheia.html

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sincretismo, Legitimidade e o Asno de Ouro de Apuléio - Agathos Athenodoros

SINCRETISMO,
LEGITIMIDADE,
E O ASNO DE OURO DE APULÉIO³

– Agathos Athenodoros


Sou Bruxo e Wiccaniano e entendo que a Deusa ama a diversidade. Caso contrário, haveria apenas uma espécie de ser vivo no planeta. Infelizmente alguns puristas acham que podem impedir o desenvolvimento habitual das sociedades; acham que podem impedir que esta ou aquela religião se renove e se transforme. É possível apontar inúmeras referências entre romanos, gregos, celtas, iorubas e outros antigos sobre esta mistura, mas deixo a melhor para vocês: no Asno de Ouro de Apuléio – um texto do século II –, Lucius diz:

"Rainha do Céu, quer sejas Ceres que nos dá o sustento, Mãe e criadora das cearas (...) que visita agora com freqüência os campos Eleusis; ou Vênus celeste, que, depois de ter nos primeiros dias do mundo unido os sexos contrários, dando o nascimento Eros e perpetuado o gênero humano através de uma renovação eterna, recebe uma agora um culto no santuário de Pafos, rodeado de ondas; ou a Irmã de Febo, que, consolando através de cuidados tranqüilizadores as mulheres em trabalho de parto, suscitou povos inteiros, e que nós veneramos presentemente no célebre templo de Éfeso. A terrível Prosérpina com urros noturnos e com um tríplice rosto, que reprime os ataques das larvas, mantêm fechadas as prisões subterrâneas, erra por aqui e por ali nos bosques sagrados, e a quem apaziguamos com diversos ritos – tu espalhas a tua luz feminina sobre todas as muralhas fortificadas, alimentas com teus rios úmidos as sementes fecundas, e distribui nas tuas evoluções solitárias uma claridade indefinida – sobre qualquer nome através de qualquer rito, sob qualquer aspecto que seja legítimo invocar-te –, assiste-me na minha infelicidade."
 
Ela não pareceu ofendida com a oração de Lucius – um purista argumentaria que essa mistura toda seria ofensiva aos Deuses. Antes disso, ela se sentiu emocionada, respondendo:

"Eu venho ao teu encontro, Lucius, emocionada com as tuas orações, eu mãe da natureza inteira, senhora de todos os elementos, origem e principio dos séculos, divindade suprema, rainha dos mares, a primeira entre os habitantes do céu, modelo entre as Deusas e os Deuses.

O autor do texto, Apuléio, refere–se aos inúmeros atributos e nomes de Ísis, a principal divindade do Culto de Ísis, e possivelmente uma das mais populares religiões do Império Romano. Ele se refere a ela através de seu personagem, Lucius, por nomes e atributos de diversas deusas gregas. E a própria deusa expande seus nomes e significados quando diz

Os cumes luminosos do céu, as brisas salutares do mar, os silêncios desolados dos infernos, sou eu que os governo ao meu bel prazer. Poder único, o mundo inteiro me venera sob numerosas formas, por meios de ritos diversos, sob múltiplos nomes. Os Frígios, primogênitos dos homens, chamam-me Mãe dos Deuses, Deusa de Pessimunte; os atenienses autóctones, Minerva Secropia; os cipriotas, banhados pelas ondas, Vênus Páfia; os cretenses portadores de flechas, Diana Dictina; os sicilianos trilingues, Proserpina Estígia; os habitantes do antigo Eleusis, Céres Ática; uns Juno, outros Bellona, estes Hécate, aqueles Ramnusia. Mas aqueles que o Deus Sol ilumina com seus raios nascentes, com seus raios quando declina no horizonte, os povos das duas etiópias e os egípcios poderosos através de seu antigo saber honram-me com um culto que me é próprio e me chama pelo meu verdadeiro nome, A Rainha Ísis. "[1]

Este texto foi escrito no século II de nossa era por Lucius Apuléio, que era devoto de Isis e fazia parte do culto desta Deusa. Ora, não acho que este estado de culto tenha chegado a este ponto da noite para o dia. E também não sou ingênuo de acreditar que essas foram palavras as exatas da Deusa: quando um antigo desejava legitimar uma idéia ou crença, colocava essa idéia na boca de um figura importante – neste caso, a Deusa Ísis. Entretanto não há nenhum documento que questione este ponto de vista na antiguidade, o que me sugere que essa crença sincrética em Ísis, nestes moldes, fazia parte do senso comum de seus adeptos e que, portanto, para garantir a legitimidade do texto é necessário que ele seja reconhecido como legitimo por seus leitores. De fato, o desenvolvimento do culto é muito anterior ao inicio dos primeiros reinos helenísticos e mesmo a consolidação do Império Romano.

Outro exemplo forte disto é com certeza o inicio do culto de Cybele em Roma, sincretizada desde cedo com a Magna Dea latina, nada mais nada menos que "Grande Mãe” [2].

Entretanto, não é somente Cybele a detentora deste título. Ela é a mais conhecida. Tenho conhecimento de que apenas os iniciados no culto de Athená, chamada de Minerva pelos Romanos, se referiam a Deusa como "Mãe". Diversas outras divindades no Mediterrâneo eram tachadas de Mãe ou Grande-Mãe, tais quais Hera, Afrodite, Rhea, Hécate, Astarte, entre outras. Cada uma delas identificada pelo autor como sendo Isis (nas palavras da própria divindade), mas que a despeito do sincretismo estavam inseridas dentro de uma lógica cultural específica na qual se exige ao menos um elemento de identificação para o processo sincrético. Neste caso, a idéia da Grande Mãe.

Será que este não seria o modelo de paganismo que os Wiccanianos têm em mente, mesmo que não tenham clareza disso?

Outro exemplo histórico recente é a multiplicidade de aspectos entre as divindades dos Panteões da Diáspora Africana. No Candomblé, por exemplo, existem 16 divindades com algum culto regular. Cada uma delas possui o que os adeptos chamam de qualidades. "Fulano é da qualidade tal de tal orixá..." Pois bem: na África, cada uma dessas qualidades possuía culto próprio, com mito e atribuições especificas. Com o "seqüestro" de seus fieis para a América, estes Deuses foram agrupados em grupos e passaram a ser sincretizados com determinados Deuses cujo culto e lembrança dos fiéis eram mais fortes. Ogunté (uma Iemanjá guerreira) é bem diferente de Sobá (a mais antiga das Iemanjas). Oxum, que pode ser conhecida por 16 nomes diferentes é na verdade, 16 deusas cujas características são sicretizadas na figura de uma delas (a qual eu desconheço). E vale lembrar que na Santeria (uma religião cubana semelhante ao Candomblé, também conhecida como La Regla de Ocha) Ewá é cultuada como uma Oxum. Em algumas nações do Candomblé, Xoroque (um Ogum) é sicretizado com Exu. E por aí vai...

Isso nos leva a seguinte questão. Toda religião é interpretação. Ou mais apropriadamente, toda religião necessita de interpretação, quer seja por seus fiéis, quer seja por um clero autorizado a tanto. Quando os mecanismos de interpretação não funcionam, uma crise advém disso. E uma resposta possível para a crise é sempre o sincretismo. Por isso, sincretizar é responder a um problema não postulado pelo cânone ou pela tradição. Outra forma é eliminar a concorrência.

Para refletir, sou sugerir um exemplo histórico:

No fim do século II EC, os cristãos eram perseguidos pelo Estado Romano devido a sua posição ideológica de não cultuar o Imperador. Menos de 50 anos depois, os cristãos – durante o governo de Constantino – queimaram mais de 60 livros considerados não-canônicos, isto é, apócrifos.

"E dai?" – devem estar perguntando todos de athame, foice, tocha e forcado nas mãos... –

Bem, um meio seguro de destruir outro sistema ideológico (seja ele de natureza política, religiosa ou filosófica) é tornando proibido o acesso as suas referencias. No caso dos cristãos, queimar esses evangelhos contribuiu para o fim do gnosticismo que era (para definir bem grosso modo) um curioso sincretismo de cristianismo e culto de mistério com raízes egípcias e helênicas.

No nosso caso, a boa e velha discussão "iniciação x auto-iniciação" serve para deslegitimar as tradições religiosas que em iniciação formal contra àquelas que não acreditam. Aqui a forma de "acabar com as referencias" assume um tom mais retórico e menos embasado de ambos os lados.

Para os iniciados formais, a questão da linhagem como um grande golpe de marketing, sempre coloca em xeque a qualidade do iniciado, mas nem por isso é algo ilegítimo; para os auto-iniciados serve o adágio de minha iniciadora: "o sucesso será sua prova".

Quem possui a verdade, detém o poder. Mas não se enganem: verdades são construídas historicamente. Para alguns de vocês, a bíblia sempre teve quatro evangelhos e não mais de 60; mas, entretanto, não foi essa história que nos contaram. Assim, quando eu vejo essa discussão de "iniciação x auto-iniciação", lanço o meu olhar de historiador ao futuro e pergunto: "quais são os interesses políticos e institucionais por de trás dessa celeuma?”.

Poder, meus caros. Apenas isso... Pensem por um instante como seria o mundo se apenas um de vocês pudesse decidir quem é ou não wiccaniano ou druida ou satanista ou [insira–aqui–sua–crença–favorita]...

E é isso que determinados grupos querem, ao defender seus pontos de vista em detrimento de determinada perspectiva, esquecendo que a Deusa ama a diversidade. Para a nossa religião, todas as duas formas de iniciação são necessárias. Para usar uma metáfora biológica, ambas as formas de iniciação são mecanismos de adaptação dessa religião a contextos sociais diversos. (ta, eu sei que modelos biológicos aplicados à sociologia estão fora de moda desde a Segunda Guerra). Na medida em que iniciações formais garantem a manutenção de uma determinada tradição, elas limitam o acesso à mesma (afinal, não conhecemos muitos gardnerianos...). Todavia, a prática solitária e eclética não dispõe de diversas vantagens (egrégora mágica, apoio de grupo, conhecimento sistematizado, etc.) que um Coven tradicional pode ter. Portanto, eu procuro pensar que tipo de condições sociais permitem essa ou aquela forma religiosa.

Bem, nosso tempo já demonstrou com clareza que tipo de Wicca nós temos. E sabemos com alguma precisão que tipo de bruxaria tivemos no passado. A transmissão da linhagem através da família demonstrou ser a forma mais efetiva de proteger o culto aos Antigos.

Todavia acredito que hoje a Deusa tenha outras formas de proteger seu culto e isso inclui com toda a certeza mídia de massa, auto-iniciações e sincretismos dos mais diversos. Aqueles que alcançarem o sacerdócio, realmente terão passado por inúmeros testes sutis, confirmando o dito o "sucesso será sua prova". E é por essas que eu não me preocupo e nem posso me preocupar com a qualidade deste ou daquele iniciado, pois a experiência é maior que iniciação formal.

Outro dia, eu estive pensando numa imagem muito sugestiva: somos (como iniciados) instrumentos da Deusa. Então imaginei uma mulher numa cabana com seu altar e muitas estantes. Em cada canto dessa cabana há um instrumento: um athame, um bastão, um livro, a própria mesa de cada altar... E me veio à cabeça ela própria nomeando cada instrumento, chamando este athame de iniciado fulano, aquele bastão de sacerdote beltrano. Ocorre-me agora que cada mesa de altar é um Coven, uma tradição... E que às vezes ela coloca alguns instrumentos juntos porque ELA QUER AQUELE ALTAR DAQUELE JEITO!

E do mesmo modo que nos temos alguns instrumentos que não ficam em nosso altar – por ex.: aquele vaso de planta dedicado às fadas do inverno ou um athame específico, usado para guardar a entrada da casa, existem bruxas/os – instrumentos Dela – que também trabalham sozinhos. Alguns "instrumentos" foram Consagrados segundo regras específicas (Lua num determinado signo, regras de uma tradição, etc.) e outros foram produto de pura intuição. Instrumentos tem sempre um nome, seja teu Cálice de Bruxo, seja o sacerdote "Zezinho"; e quando ela decide mudar o(s) altar(es), Ela pode rearranjar tudo segundo Sua vontade. Assim, como para cada instrumento nosso cada instrumento Dela.

Essa metáfora traduz, portanto toda a discussão acima. A diversidade é regra na natureza e se traduz na multiplicidade de expressões da vida. E do mesmo modo, quando tratamos de cultura e neste caso especifico, de religião – de numa religião inspirada na natureza – temos que supor que sua diversidade reflete apenas um mecanismo de “seleção e sobrevivência cultural” (na falta de termos melhores), quer seja agora ou na antiguidade, quer seja durante a diáspora africana, quer seja em cada indivíduo, quer seja em cada tradição.





[1] Apuléio, O Asno de Ouro. XI 2-5.
[2] Tito Lívio, História de Roma. 29.10-14.
[3] Texto retirado com permissão do autor de: http://www.caminhosdassombras.org/agathos_sincretismo.htm

domingo, 7 de novembro de 2010

O MITO DA CRIAÇÃO: O Conceito de Cosmogonia nas Metamorfoses de Ovídio.


O MITO DA CRIAÇÃO:

O CONCEITO DE COSMOGONIA
NAS METAMORFOSES DE OVÍDIO


Elaine C. Prado dos Santos


Professora Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo. Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, desde 1988. Vinculada ao CCL, Centro de Comunicação e Letras.

Universidade Presbiteriana Mackenzie- UPM)



Resumo:

A partir da metamorfose pela qual o poeta  latino, Ovídio (Ia. C.), constrói os episódios da obra as  Metamorfoses, verifica-se, em sua estrutura, uma estratégia narrativa que se desdobra ao longo do poema, desenhando uma imagem global de um canto  ininterrupto das origens  do mundo até o tempo do poeta, ou seja, até o século de Augusto. Por meio desse universo de metamorfoses e a partir da cosmogonia construída no mito da criação, que supõe a relação entre o caos e a ordem, pretende-se, neste  trabalho, observar como e por que o poeta retoma o mito da criação,  relacionado aos ecos provenientes da literatura grega e romana, para na construção intertextual, desconstruí-lo, ao polemizar um mito.


The myth of creation: the cosmogonic concept in Ovid’s Metamorphosis


From the metamorphosis through which  the Latin poet, Ovid (I b. C.), builds the episodes in the classic work Metamorphosis, it is possible to verify, in its structure, a strategic narrative that is unfolded throughout the poem, indicating a global image of a nonstop chant from the origins of the world until the poet’s times, that is, until the August century. By means of this universe of metamorphosis, the poet communicates an extremely complex  world representation. Based on that, from the cosmogony created in the myth of creation, which supposes the relationship between chaos and order, the present paper intends to observe how and why, in Ovid’s work, there is a return to the myth of creation, related to the echos coming from Greek and Roman Literatures, to deconstruct it, in the intertextual construction, by polemizing the myth.




Observa-se, nas Metamorfoses, uma rede de correspondências com outras obras anteriores a Ovídio, segundo um princípio de  imitatio1. O poema ovidiano estabelece um fator de unidade na longa exposição de lendas, ao desenhar uma construção através de empréstimos tanto de aspectos narrativos quanto de procedimentos estilísticos de fontes latinas e gregas. O poeta não hesita em modificar radicalmente fontes às quais ele se  refere, o que leva a crer que a originalidade do projeto ovidiano se cumpre por uma combinação de recortes e de diferenciações.

Observa-se que duas obras exerceram influência conjunta sobre a narrativa das Metamorfoses e seu inteiro desencadeamento, ou seja, verificam-se correlações com o “Panegírico de Messala”  do poeta Tibulo e o canto VI das Bucólicas de Vergílio. Conforme Tronchet (1998, p. 40), parece que Ovídio planeja a obra como uma espécie de desafio que está lançado no “Panegírico2 de Messala3”, pois o poema tibuliano apresenta uma recusa ostentatória de compor uma cosmogonia. Ovídio, desta forma, assume o papel do outro que é convidado, no poema tibuliano, a narrar as maravilhas do mundo em uma atitude de ampliação (alter dicat opus magni mirabile mundi) (que um outro diga a criação maravilhosa do vasto universo) (Tib. III, 7,18).

Os versos do panegírico que se seguem após a preterição evocam a separação dos quatro elementos (19- 23), com termos que remetem ao poema de Lucrécio4. Como ponto de partida, Ovídio abordou o tema da criação do mundo, no livro I, ao expor como o universo tinha  sido criado, indicando primeiramente como os elementos receberam, cada um, seu lugar (Ov. Met. I, 26-31).

Ora, para se constatar uma simetria entre as duas obras, aponta-se um curioso cruzamento entre elas, ou melhor, dois fragmentos-chave do  “Panegírico de Messala” estão ligados por um eco entre dois hexâmetros, que se situam no início (Tib. III,7, 5-11) e no fim (Tib. III,7, 210-211); da mesma forma alusões são detectadas nas Metamorfoses  entre o livro I e o livro XV, isto é, o verso 67 do livro XV das Metamorfoses torna-se um eco do verso Met. I, 3 e os versos Met. XV, 237-251 apresentam pontos de encontro com Met. I, 21-31 e 67-68. A referida simetria entre as duas obras, para uma organização das Metamorfoses, segundo Tronchet (1998, p.45), estabelece um paralelo entre a maneira como terminam as Metamorfoses e o final do panegírico, pois nos dois casos, é o poeta enunciador que se projeta a um futuro além túmulo; nos dois casos, uma forma de sobrevivência é considerada, a perpetuidade por meio da obra sempiterna. Constata-se uma correspondência entre as Metamorfoses e o panegírico que explica aspectos da organização narrativa  ovidiana, ao propor que a criação do mundo está vinculada a um conceito da metamorfose.

Segundo Otis (1966, p.94)  e Tronchet (1998, p. 48), aponta-se também uma nítida semelhança entre o começo das Metamorfoses e o início do canto VI das Bucólicas de Vergílio. A écloga resume as grandes linhas de uma composição que anuncia o desenvolvimento da obra ovidiana, evocação de uma cosmogonia, mais alusão rápida ao dilúvio e à idade de ouro (Verg.  Buc. VI, 31-42). Em Vergílio, a partir da alusão à cosmogonia, ao dilúvio5 e à idade de ouro, segue-se uma série de lendas, nas quais muitas tratam de metamorfose e uma boa parte destas histórias se acha nos episódios que contam entre os mais notáveis do poema ovidiano. Afirma-se, por conseguinte, que Ovídio seguiu e continuou o caminho traçado por Vergílio e por Tibulo, privilegiando relações intertextuais de tal forma que a criação do mundo, tratada no Panegírico como preterição, transforma-se, nas Metamorfoses, em um verdadeiro episódio. A VI Bucólica, por meio do canto de Sileno, não só estimulou Ovídio para que realizasse narrações completas, mas também sugeriu uma aproximação com outra obra, as Argonáuticas6 de Apolônio de Rodes.

Por meio de diversos ecos, percebe-se a multiplicidade de fontes, as quais Ovídio utilizou nas Metamorfoses, o que leva a crer que a poética ovidiana se revela resolutamente intertextual. Afirma-se assim que, logo após o prólogo, praticamente termo a termo, os versos 5-6 das Metamorfoses foram inspirados pelos versos 496 – 497 do livro I das Argonáuticas. Segundo Ovídio, antes do mar e das terras e do céu, que cobre todas as coisas, a natureza tinha no mundo uma única face, a qual chamaram de  caos. Destaca-se que, no verso  non bene iunctarum discordia semina rerum (Ov. Met. I, 9) (uma discórdia das sementes das coisas não bem constituídas), aparece o  termo discórdia que retoma uma noção empedocleana7 e que também foi apontada por Apolônio (Arg.I, 498), ao apresentar a luta entre os elementos como fator de diferenciação, enquanto Ovídio faz intervir uma divindade anônima ao lado da natureza, para instaurar a ordem universal, a harmonia -  Hanc deus et melior  litem natura diremit  (Ov. Met. I, 21)  (Um deus acabou com esta luta e a natureza tornou-se melhor).

Verifica-se que Ovídio dispôs basicamente de duas obras fundamentais para traçar a história do mundo: 1) a Teogonia de Hesíodo, que lhe apresentou uma imagem de evolução mediante um encadeamento de nascimentos divinos; e 2) o livro V do  De Rerum Natura de Lucrécio, filosofia  epicurista, que relata a formação da terra e dos astros, o aparecimento dos homens até o desenvolvimento da civilização. Primeiramente, a Teogonia permitiu a Ovídio

organizar a matéria mítica, pois lançou os fundamentos de toda uma herança fabulosa e fixou as relações dos deuses com os principais aspectos do mundo sensível. A Teogonia não só serve de ponto de referência na elaboração de inúmeras lendas, mas também instala uma diacronia do mundo divino e humano por meio dos infortúnios de Prometeu, segundo Wilkinson (1958, p. 233-234), este arranjo exerceu uma influência determinante sobre o projeto de Ovídio. Deve-se pensar em Hesíodo, a partir do verso 7 das Metamorfoses, quando aparece a noção de caos, que designa a confusão inicial de todas as coisas. Nas Metamorfoses, o caos nomeia o estado primitivo do universo e a construção quem dixere chaos leva a considerar uma pluralidade  de fontes8. Para Jaa Torrano (1995, p.43), o Kháos, em Hesíodo, é a força que preside à separação, ao fender-se, dividindo-se em dois.

Em Ovídio, a partir da evocação das origens, o poeta adota um quadro no qual já figura a maioria das divindades do panteão clássico, como se verifica no episódio de Licaão, quando Júpiter, de uma maneira quase institucional, convoca a assembléia dos deuses (Ov. Met. I,167). Nas Metamorfoses, diferentemente da Teogonia, não há uma seqüência passo a passo de uma lista de acontecimentos ordenados segundo um princípio arbitrário, como a ordenação em uma linhagem, pois, em Ovídio, o lugar dos episódios não depende de uma classificação única e pré-estabelecida, mas implica uma  estratégia narrativa que administra a disposição das diversas histórias em função da metamorfose como princípio operativo.

Embora o tratamento dado por Ovídio seja diferente do de Hesíodo, é notável que foram mantidos, na  obra, acontecimentos decisivos da Teogonia, como a evocação da gigantomaquia (Ov.  Met. I,151-162 ) e a eliminação de Saturno9 (Ov.Met. I,113), fatos  que remetem também à obra os Trabalhos e os dias, da qual Ovídio adapta o mito das raças. O poeta atribui a criação do homem a Prometeu, o  opifex rerum que separa a terra do céu (Ov.  Met. I,82-83). O demiurgo torna-se o artista, que modela o homem  à imagem divina para contemplar o divino: Natus homo est; siue hunc diuino semine fecit (Ov. Met. I,78).

O mito de Prometeu, nas Metamorfoses, encontra-se em contigüidade com a revolta dos gigantes, na Teogonia, e com a série das raças humanas, nos Trabalhos e os dias, desempenhando o papel de um catalisador intertextual10, segundo Tronchet (1998, p.64), uma vez que sugere a aproximação entre as duas obras.

O poeta, nas Metamorfoses, apresenta as quatro idades, imediatamente seguidas da luta entre os gigantes e os deuses do Olimpo. Com o relato das quatro idades, entra-se em um mundo verdadeiramente hesiódico e mítico, ao mesmo tempo, lembra-se de Vergílio através da idade de ouro apresentada com inocência e espontaneidade (Verg.  Buc. IV, 4 -7) e (Verg.  Georg. I, 125-127), segundo Otis (1966, p.94). 

Antes do reinado de Júpiter, conforme Vergílio, ou melhor, durante o domínio de Saturno, os homens se contentavam com o que lhes davam o sol, as chuvas, enfim, o que espontaneamente a  terra produzia. Para o poeta das Geórgicas, o homem vivia antes na  idade áurea, graças aos frutos espontâneos da terra, sem fadiga. Porém, neste estágio, as qualidades do homem foram abafadas, depois, aguçadas por Júpiter ao semear as dificuldades na natureza. Já nas Metamorfoses, Ovídio apresenta a idade de ouro sem repressão, pois se cultivavam a lealdade e a justiça por sua vontade, sem lei (Ov. Met. I, 89-90).

Nota-se, nas Metamorfoses, uma passagem rápida da idade de ouro para a de ferro, como se as etapas intermediárias corressem para se entrar na idade derradeira. As duas idades – de ouro e de ferro - ficam em evidência, somente para ocupar os extremos: início e fim, provavelmente a fim de se estabelecer um contraste entre ambas. A idade de ouro  está perdida, não correm mais rios de leite, de néctar e de mel dourado. A primavera eterna se acaba, da mesma forma a liberdade e o ócio, pois quando se entra na idade de prata, Saturno é atirado ao Tártaro e Júpiter contrai o tempo da antiga primavera (Ov.  Met. I,113-114). O destronamento de Saturno por Júpiter, inspirado na Teogonia, marca o ponto de articulação entre as idades de ouro e de prata (Hes.Teog. 490-496). A sucessão das raças, desde o ouro até o ferro,  corresponde à desordem radical das atividades humanas e das próprias condições de vida. Os efeitos dessa evolução podem ser assimilados aos de uma metamorfose sobre a humanidade inteira.

Conforme Tronchet (1998, p.68), é significativo o fato de Ovídio ter reduzido a quatro o número das idades, já que o poeta suprimiu a raça dos heróis. Quanto ao número quatro, pode-se observar uma correspondência entre a passagem referida e todo o começo das Metamorfoses, no qual intervêm os pontos cardinais, ligados aos ventos principais, às estações do ano, introduzidas na idade de prata. O fator analógico constituiu, para o poeta, uma razão suplementar de modificar o mito de partida. Na obra os Trabalhos e os dias, são cinco as raças: de ouro, de prata, de bronze, dos heróis e de ferro. Tal transformação do mito permitiu a Ovídio liberar a cronologia das Metamorfoses de toda uma indexação sobre os Trabalhos e os dias, que situava a emergência da idade de ferro em um passado relativamente recente, depois que os heróis se assimilaram aos protagonistas dos ciclos épicos de Tebas ou de Tróia (vv.161-165).

Concebe-se que a redução a quatro idades efetuada por Ovídio implicou uma desordem radical para a fisionomia  do mito. Com a eliminação dos heróis, afirma-se, no texto ovidiano, uma temporalidade homogênea, pois a sucessão das etapas obedece a uma estrita orientação axiológica, que racionaliza o episódio ao lhe dar uma estrutura unívoca, segundo afirmação de Tronchet (1998, p.69).

A última idade é a do duro ferro - de duro est ultima ferro (Ov. Met. I,127). Ovídio conclui sua descrição com um sentimento de ofensa moral, pois tudo, que não é lícito, aparece exatamente nesta idade (Ov. Met. I,128-129). Não há mais piedade - Victa iacet pietas  (Ov. Met. I,149); até a deusa da justiça, a virgem Astréia, foi a última dos deuses, ultima caelestum (Ov. Met. I,150), a deixar a terra. Então, é notável a marca de declínio moral (Ov. Met. I,160-161), quando acontece o ataque dos gigantes, de seu ímpio sangue nascem os homens perversos, raça violenta e ávida de cruéis matanças.

Nas Metamorfoses, a idade de ferro é projetada a um passado longínquo, mas com diversas sugestões da atualidade de práticas criminosas, contrariamente à tradição hesiódica, na qual esta idade degradada do  gênero humano se prolonga até o presente. É assim que o mito, em Ovídio, se reveste de uma função narrativa bem precisa, pois serve para operar a transição a partir de uma cosmogonia, dominada por um deus anônimo -quisquis fuit ille deorum (Ov. Met. I, 32), que organiza o universo, separando os quatro elementos, em direção a um mundo lendário mais familiar, no qual Júpiter reina sobre deusas e deuses. De fato, há uma bifurcação no desenvolvimento inicial da  narrativa, quando o aparecimento do homem é explicado  segundo uma dualidade de hipóteses: 1. Prometeu, o criador das coisas, 2. e a Terra como detentora do germe celeste que fará do homem um animal à parte (Ov. Met. I, 78-81).

Após tal bifurcação, a narrativa remete à intervenção demiúrgica de Prometeu. Em virtude da relação metonímica,  satus Iapeto  (Ov.  Met. I,82), estabelecida entre a personagem Prometeu e os poemas de Hesíodo (Hes.Teog. 527-528), (Hes.Os Trabalhos e os dias, v.54), o relato ovidiano é conduzido pelo encadeamento do mito das idades (Ov. Met. I, 89-150) até a luta dos gigantes contra Júpiter (Ov.  Met. I,151-162) , desencadeando-se sobre a primeira metamorfose individualizada, a de Licaão (Ov. Met. I,237).

Desta forma, o mito das quatro idades representa o cenário no qual evoluem homens e no qual deuses produzem Metamorfoses como desvios que transgridem tanto as formas gerais da natureza quanto as leis que a regem. Por isso, registra-se o fim do dilúvio como um retorno à norma - Redditus orbis erat (Ov. Met. I,348) (O mundo volta a ser como  era). Graças aos empréstimos de Hesíodo, acha-se, nas Metamorfoses, um deslocamento entre o desenvolvimento de uma criação baseada em hipóteses filosóficas e da emergência de um mundo maravilhoso. Ora, o mito das raças proporcionou a Ovídio um episódio suscetível de se inscrever em uma esfera temática genuinamente da metamorfose.

Em resumo, Ovídio tomou emprestado de Hesíodo apenas um episódio, no qual se desenhou brevemente a imagem de uma metamorfose superlativa, constituída pela evolução mítica da espécie humana e de seu meio-ambiente. A  evocação da Teogonia, porém, associada à dos Trabalhos e os dias, assinalou a preocupação do poeta em não deixar de  lado um poema, cujo conteúdo recortasse o campo ficcional das Metamorfoses.

Por outro lado, nessa seleção de fontes utilizadas pelo poeta, aponta-se também o livro V do De Rerum Natura de Lucrécio, que apresenta uma história do mundo e da humanidade em uma vertente  naturalista, a doutrina epicurista. Embora Ovídio não siga a filosofia epicurista, ele não deixa de fazer múltiplos empréstimos da obra lucreciana, como se pode depreender já no início das Metamorfoses, primaque ab origine mundi (Ov. Met. I,3), uma evidência da longa passagem lucreciana ao retratar a formação do universo (Lucr. V, 548-549).

Verifica-se, nas Metamorfoses, que a confusão inicial da natureza se aproxima da exposição de Lucrécio, quando Ovídio emprega, no poema (Ov. Met. I, 5-7), o mesmo termo lucreciano (Lucr.  432-437), moles. Aliás, na mistura, a luta incessante dos elementos recebe o mesmo nome, discordia em ambos os textos - Non bene iunctarum discordia semina rerum (Ov. Met. I, 9), o mesmo em Lucrécio (Lucr.  440-443).

Depois da discórdia, do estabelecimento progressivo de uma ordem, em que cada coisa é dotada de um lugar, evidenciam-se, neste ponto, encontros entre as duas obras11, por exemplo: (Ov. Met. I,23) e  (Lucr. , V. 446). De um relato a outro, de Lucrécio a Ovídio, há conforme Tronchet (1998, p.72), um processo de separação, de delimitação, que se repete em grandes linhas, embora Ovídio tenha frisado um desvio decisivo em relação ao modelo lucreciano, quando proclama a presença de um deus anônimo como organizador do mundo. A postura de Ovídio é, então, a de recusar a assumir posições materialistas de Lucrécio, pois o caminho ovidiano é abrir um campo de interpretações.  Nas Metamorfoses, um lugar particular é reservado à criação do homem (Ov. Met. I, 82-86), o que não acontece no De Rerum Natura  (Lucr.V. 790 – 798), pois Lucrécio não isolou o homem dos outros animais. Neste ponto,  a correlação entre as duas obras se acha momentaneamente interrompida.

O quadro da idade de ouro apresentado por Ovídio lembra a maneira pela qual Lucrécio evoca, no De Rerum Natura, a rude existência levada pelos primeiros homens. Entretanto, o mito da  idade de ouro, apresentado por Ovídio, confronta duas variantes opostas  da tradição: 1. de um lado, o  topos de uma época fabulosa quando a natureza dava, em abundância,  tudo ao homem, sem que o homem necessitasse trabalhar (Ov. Met. I, 109-112), 2. por outro lado, o mito da idade de ouro demonstra também um quadro realista da privação que a humanidade (Ov. Met.  I, 103-106), um dia, sofreu pela ausência de todo saber técnico.

Os versos ovidianos acima mencionados retomam uma idéia lucreciana (Lucr. V, 939-944) de que a terra fornece uma superabundância de alimentos, pois ainda na idade de ouro se registra uma incapacidade de os homens praticarem a agricultura. Interessante notar, nas Metamorfoses, que Ovídio sublinha a idade de ouro marcada por uma ausência de leis, apresentando a expressão sponte sua no início do hexâmetro (Ov.  Met. I,90), a qual se torna um indício intertextual lucreciano (Lucr.V, 937-938), segundo afirmações de Tronchet (1998, p. 74).

Encontra-se, ainda, em Lucrécio, a expressão sponte sua em outros dois trechos, que indicam respectivamente: 1. a inexistência de leis e a espontaneidade que regem os comportamentos (Lucr.V, 960-961), 2. a humanidade, cansada de ser dilacerada por incessantes lutas, aceita espontaneamente se submeter a uma legislação (Lucr.V, 1145-1147).

Assim, enquanto o poeta Lucrécio atribui à situação inicial da idade de ouro um caráter negativo, em que os homens, sem conhecimento, se acham em um estado de barbárie original, no qual cada um domina, pela força, as vítimas que encontra em seu caminho; por outro lado, a representação ovidiana da idade de ouro exalta plenamente a harmonia universal, que pode reinar, sem leis, por ser fundada sobre a lealdade e a justiça sem a repressão de qualquer castigo (Ov. Met. I, 91-93). O poeta Lucrécio diz que eles não podiam compreender o bem comum, nem sabiam usar quaisquer costumes ou leis, pois cada um levava espontaneamente a presa que a sorte lhe oferecia (Lucr. V, 958-961).

Ao inserir o motivo lucreciano em sua versão da idade de ouro nas Metamorfoses, Ovídio buscou o exemplo vergiliano (Aen. VIII, 314-336), emprestando, inicialmente, a imagem de um quadro rústico da humanidade primitiva. Em seguida, um prolongamento desta relação intertextual denota um retorno ao desenvolvimento propriamente epicurista, pois  poena metusque (Ov. Met. I,91) respondem aos versos de Lucrécio -  Inde metus maculat poenarum praemia uitae. (Lucr.  V, 1151) (Depois, o medo dos castigos macula os prêmios da vida). Os versos que registram aurea prima ovidiana (Ov. Met. I,89-93) não são retirados exclusivamente da Eneida de Vergílio, mas o poeta Ovídio estabelece uma continuidade entre a visão lucreciana e a vergiliana. Ou melhor, Ovídio se apropria de um material temático e literário pré-existente, do qual explora e seleciona particularidades,  reelaborando o material a fim de causar efeitos inéditos, ou seja, ao descobrir um afloramento da pré-história lucreciana sob uma alusão vergiliana na idade de ouro, retoma tal aproximação entre os dois poemas, multiplicando os pontos de contato entre sua versão e a do De Rerum Natura. A composição desta passagem se fundamenta em renovar um assunto já conhecido, ao combinar, de forma original, as tradições divergentes.

Aliás, não se justifica interpretar a idade de ouro ovidiana como uma alusão política, pois o poeta não idealiza este período, nem procura fazer dele o modelo de uma felicidade inacessível, simplesmente é sua estratégia narrativa contar o mito em uma esfera de metamorfose12.

O quadro oferecido por Lucrécio de um progresso trazido pela civilização não sugere que os primeiros homens deviam viver em total despojamento. Conforme Tronchet (1998, p. 76), a atitude ovidiana, em uma contigüidade de duas versões, exerce sobre a representação mítica uma ação crítica, que o leva a se interrogar sobre sua coerência, ou seja, revelar certas inverossimilhanças encontradas nestas representações lendárias.

Ao tirar, do desenvolvimento lucreciano, o motivo da precariedade, Ovídio aproxima, nas Metamorfoses, as duas etapas sucessivas do mito, em um contraste determinante estabelecido entre o ouro e o ferro. Nas origens, registra-se uma pureza moral que coincide com a ausência de civilização, a seguir a proliferação dos crimes associada à difusão dos bens materiais. Ovídio associa a representação da idade de ferro à do poeta epicurista; no entanto, o julgamento elaborado por ambos é inverso no texto de um e no do outro. Conforme Ovídio, o ferro nocivo e o ouro ainda mais nocivo apareceram, surgindo a guerra, que combate com ambos (Ov.Met. I,141-142). Lucrécio diz que mais tarde se criou a riqueza e se descobriu o ouro, o qual facilmente roubou as honras aos que eram fortes e belos (Lucr. V, 1113-1114).

No entanto, há uma oposição do otimismo afixado por Lucrécio à visão pessimista tradicional, presente, por exemplo, em Catulo (LXIV, 397-399), cuja influência domina o fim da passagem ovidiana (Met. I,144), pois em ambos, registra-se uma terra impregnada de crime a ponto de irmão matar o próprio irmão. Encontra-se, nas Metamorfoses, a evocação de pequenos trechos do desenvolvimento lucreciano, sem que sejam retomados os pressupostos ideológicos. Não se pode esquecer de que a inversão do ponto de vista ovidiano13 responde à continuidade de sua narrativa, ou seja, a degeneração dos comportamentos humanos justifica o desencadeamento do dilúvio.

Compreende-se, então, que a parte mítica do relato das origens de Ovídio está impregnada de lembranças do De Rerum Natura. No entanto, no início da obra ovidiana, não mais que idéias, a fisionomia do texto não está de acordo ipsis litteris com o modelo lucreciano, o qual apresenta os acontecimentos em uma seqüência irreversível. Nas  Metamorfoses, os episódios, escalonados em um quadro unitário, não aparecem em etapas lógicas de  uma série orientada. Todavia, há situações análogas, cujas similitudes estabelecem, na obra ovidiana, diversas relações à distância, como a perfeição do dilúvio que coincide com um tipo de criação renovada em que homens e animais vêem o dia uma segunda vez: os primeiros saídos das pedras lançadas por Deucalião e Pirra e outros que nascem da própria terra por geração espontânea.

Embora o texto ovidiano não esteja em uma conformidade integral com o texto lucreciano, há correlações evidentes, em forma de eco, que se estabecem entre a parte inicial do livro I das Metamorfoses e o livro V do De Rerum Natura, como em dois hexâmetros  que concluem a metamorfose das pedras em seres humanos. Por sua dureza, nas Metamorfoses (Ov. Met.I, 414-415), a humanidade regenerada, raça dura e conhecedora das fadigas do trabalho, se assemelha à da obra De Rerum Natura (Lucr. V, 925-926).

Ao evocar o nascimento dos animais, graças ao calor do sol combinado com água, os versos de Ovídio (I,  416-418) (I, 430-431) respondem aos de Lucrécio (V, 805-806), pois em ambos a terra, produziu, por sua espontânea vontade, os outros animais. Da mesma  forma, há uma analogia entre os dois textos (Ov. Met. I, 419-421)  (Lucr. V, 808), quando se compara a terra geradora ao ventre materno, pois se depreende a idéia de que a terra gera seres monstruosos.

Em síntese, evidencia-se que a série de lembranças do epílogo do dilúvio fecha um conjunto notável de correspondências entre o livro I das Metamorfoses e o relato naturalista de Lucrécio, como se apresenta a seguir:

1.  nascimento do universo 416-508 (De Rerum Natura)
2.  aparecimento dos vegetais e animais   780 – 877(De Rerum Natura)
3.  homens primitivos e seu progresso para a civilização 925 – 1457 (De Rerum Natura)

Intercalam-se duas digressões, uma  sobre o movimento dos astros (509-779) e a outra sobre a impossibilidade dos seres híbridos como os centauros (878-924). Consoante afirmações de Tronchet (1998, p. 79), o livro V do  De Rerum Natura  apresenta uma chave a respeito da escolha de Ovídio, pois uma breve passagem lucreciana desempenhou o papel de incitador ficcional, isto é, antes de iniciar a formação do universo, o poeta epicurista menciona dois mitos destinados a ilustrar o combate entre os elementos com o risco de pôr fim ao mundo: o fogo depois a água aparecem para impor dominação absoluta: a aventura de Faetonte (Lucr. V, 396-404) e o dilúvio (Lucr. V, 411-415). Para Lucrécio, o fim do mundo poderá ser a conseqüência natural da luta do fogo e da água, do elemento quente e do elemento frio; parece-lhe, historicamente, se tal termo pode ser justo, que  houve vitórias parciais, ora do fogo, ora da água, mas que um dia um dos elementos poderá vencer definitivamente.

A partir das alusões aos dois mitos em Lucrécio, Ovídio os transforma em dois episódios maiores nas Metamorfoses, colocando-os em quiasmo no início de seus dois primeiros livros. Otis (1966, p.393) também afirmou que Ovídio se inspirou em Lucrécio, ao introduzir a lenda de Faetonte em sua obra.

Quando o poeta epicurista conta  a queda de Faetonte, inegáveis semelhanças provam a influência dos versos de Lucrécio sobre a narrativa das Metamorfoses, como se verifica a expressão no início do hexâmetro: At pater omnipotens tanto em Lucrécio V, 399-401 quanto em Ovídio (Ov. Met. II, 304-308).

Ovídio conectou o quadro do dilúvio  a outra passagem de Lucrécio, na qual foi evocado o aparecimento das espécies. Dispôs, desta forma, o começo de seus livros I e II com empréstimos manifestos do De Rerum Natura, ao reforçar os elos analógicos, tecidos pelo tema entre os episódios referidos.

Ovídio marcou a correlação dos dois cataclismas – dilúvio e incêndio – como resposta à predominância de um dos quatro elementos. É proposital que ele corte o relato do dilúvio por um anúncio do incêndio universal, causado por Faetonte (Ov. Met. I, 253-261). Mesmo que Ovídio  tenha invertido a ordem do processo, confirmam-se indícios de uma filiação em relação a Lucrécio; no entanto, os efeitos da incitação lucreciana desempenham um papel importante para o denvolvimento das Metamorfoses.

Embora haja uma correspondência entre o início das Metamorfoses e o livro V do De Rerum Natura, existe uma distância de posturas entre as duas obras. De fato, a narração lucreciana, baseada  em postulados filosóficos, torna-se incompatível com a estratégia narrativa das Metamorfoses, que integra lendas de horizontes múltiplos, exigindo uma narração movimentada, conforme Tronchet (1998, p.81). Convém lembrar que a postura naturalista de Lucrécio é desmistificar as narrações lendárias, declarando-as apenas uma ilusão: ueteres Graium cecinere poetae  (Lucr. V,405-406) (é isto o  que cantaram os antigos poetas gregos). Para Lucrécio, os poetas arcaicos são uma garantia do saber lendário, porém tornam-se adversários de um pensamento mais naturalista, pois o poeta  epicurista exclui a influência dos deuses sobre o mundo e rejeita a possibilidade de fenômenos sobrenaturais, ou seja,  monstra que se ligam às Metamorfoses. Mesmo em uma postura contrária, Lucrécio fornece as bases da tradição mítica manipulada por Ovídio em sua obra.

Segundo Philip De Lacy  apud   Tronchet (1998, p. 84), Ovídio apenas seguiu e prolongou uma tendência que era comum aos poetas augustanos, pois eles tinham um leque de doutrinas filosóficas, comparáveis a sua provisão de lendas míticas e de relatos históricos.

Quando Ovídio conta as origens do universo, retendo entre os textos disponíveis uma gama de versões nas quais ele integra e imbrica diversas teses, propõe indiretamente uma reflexão sobre as relações analógicas ou conflituosas, que podem entreter as diferentes doutrinas. Por meio da aproximação e da contaminação de idéias e de motivos em princípio inconciliáveis, as Metamorfoses revelam um ceticismo fundamental que desencadeia sobre uma permanente lucidez do poeta, segundo Tronchet (1998, p. 86).

Tal atitude é considerada como o último resultado de uma evolução iniciada pelo alexandrinismo e que, retomada por Catulo e pelos  noui poetae, é sobretudo afirmada durante o período augustano, principalmente entre os elegíacos14. Daí, os poetas se autorizam a unir histórias de origens muito variadas e eles não hesitam em reunir, entre os exemplos, motivos míticos e filosóficos.  Porque a heterogeneidade das  fontes não é sentida como um obstáculo à construção do poema ovidiano, desde que os aspectos selecionados por Ovídio mantenham com o assunto tratado uma relação de ilustração ou de analogia. Assim com o canto de Sileno, Vergílio forneceu, no canto VI das Bucólicas, um bom exemplo, certamente fictício, de  tal estética, pois a personagem, tirada do mundo mítico, pode falar da criação em um caráter filosófico, e depois encadear sobre Prometeu ou sobre o dilúvio.

Desta forma, o começo das Metamorfoses traz a marca de duas visões antitéticas quanto à história da humanidade, o mito  hesiódico das raças e a narração naturalista de Lucrécio, ou  melhor, Hesíodo forneceu o esquema narrativo de um episódio completo, enquanto o poema de Lucrécio, com cortes precisos, pontuou a exposição ovidiana.

Nesta fusão, Ovídio mobiliza fontes que não poderiam ser complementares e acolhe no texto  aspectos heterogêneos, que transgridem absolutamente a exigência de unidade orgânica formulada por Horácio: Denique sit quod uis, simplex dumtaxat et unum. (Hor. A. Poet., 23) (Em suma: faz tudo o que quiseres, contanto que seja com simplicidade e que tenha unidade). O resultado, segundo a visão horaciana, é monstruoso, porque os detalhes da obra não obedecem a um único tipo de representação, uni.... formae (Hor. A.Poet. 8-9). Ovídio assume, no poema, a aparência de deformidade, reunindo composições diversas nas quais os contrastes persistem através do desenvolvimento da obra, acentuando-se a construção do poema como uma organização de relações, que confere à escritura ovidiana, sob este ângulo, uma espantosa modernidade.

Nota-se que a confrontação das Metamorfoses com Hesíodo e com Lucrécio prova a negação ovidiana de seguir vias narrativas pré-estabelecidas, já que o poeta exclui o modelo de narrações lineares, cujo encadeamento de episódios se faça sempre sobre um mesmo modo. Esta escolha leva o poeta a reter, de seus predecessores, passagens elípticas como convites a produzir uma narração, como a proposta do “Panegírico de Messala”, o canto VI das Bucólicas e mais pontualmente Apolônio de Rodes ou Lucrécio.

Para concluir, diante de modelos antagônicos que lhe oferecem Hesíodo e Lucrécio, Ovídio soube achar uma distância necessária entre as esferas míticas e racionalistas, pois ele instala em seu poema diferentes empréstimos de cada uma das fontes.

Por fim, Ovídio elaborou uma organização narrativa original, capaz, por sua vez, de responder à ambição unitária que ele anunciou. Como ultrapassou a relação de exclusão entre mito e filosofia ao associar duas abordagens em um mesmo quadro das origens, ele conseguiu não só reunir os aspectos, a princípio, discordantes, segundo uma lógica interna da obra, mas também demonstrar, em linhas intertextuais, um resultado de uma tendência ao combinatório.


NOTAS:

1 Conforme Tronchet (1998, p.37) Que l`auteur des Métamorphoses soit allé puiser maintes idées dans les fonds commun de la poésie latine et grecque n`a certainement rien qui doive étonner, tant la pratique de l`imitatio était familière aux écrivains antiques.
2 De autor desconhecido, o “Panegírico de Messala” encontra-se incorporado às obras de Tibulo (III, 7).
3 Messala Corvino, cônsul, 31 a. C., foi uma das figuras principais do período de Augusto. Ao longo de sua vida, Messala foi um grande patrono dos poetas, principalmente de Tibulo e de Ovídio, e foi considerado um dos maiores oradores de sua geração.
4 Os versos 19-23 (Tib. III, 7) se comparam com o verso 21 de Lucr. II, 1111. Da mesma forma, aproxima-se também o fim do verso 18 (Tib. III,7) com os de Lucr. V, 433-454.
5Nas Metamorfoses, a gênese e o dilúvio ocupam os quatrocentos primeiros versos do livro I, a desventura de Faetonte se desenvolve também em quatrocentos versos (fim do livro I e começo do livro II), o crime de Tereu em duzentos versos (livro VI) e o relato de Vênus sobre Atalanta (livro X).
6 Consultou-se a tradução francesa de Argonautiques. Texte établi, commenté et  traduit par Francis Vian. Collection des Universités de France. Paris: Société d’ édition Les Belles Lettres, 1974.
7 Conforme Harvey (1987, p.188), Empédocles esforçou-se por reconciliar a percepção dos fenômenos cambiantes com a concepção lógica de uma existência imutável subjacente, e descobriu a solução em quatro elementos inalteráveis - a terra, o ar, o fogo e a água -, cuja associação e dissociação produzem os vários aspectos mutáveis do mundo tal como conhece. Essa  associação e dissociação resultam da ação de forças antagônicas, que constroem, destroem e reconstroem eternamente.  
8 Conforme Tronchet (1998, p.59), pode-se lembrar das palavras de Jano ao poeta, Os Fastos: Me Chaos antiqui .... uocabant  (Ov. Fast. I,103).
9 A eliminação de Saturno pode ser comparada a de Cronos por Zeus, na Teogonia.
10 Entende-se por catalisador intertextual um aspecto comum a dois textos, motivando sua presença conjunta para um terceiro texto, segundo o princípio da contaminação. 
11 Apontam-se outras correlações entre as duas obras: (Ov. Met. I, 43-44) e (Lucr. V. 492-494); (Ov. Met.I, 67-68) e (Lucr. V. 495-501).
12 Conforme Galinsky in Tronchet (1998, p. 75), il préfère simplement traiter le sujet à sa manière. Some aspects of Ovid´s Golden Age. p. 205.
13 Ovídio não segue no poema a doutrina epicurista.
14 Na poesia de Calímaco, assiste-se ao impulso tanto de uma mitologia sábia, em que a erudição leva vantagem sobre a tradição, quanto de uma literatura que se destaca das crenças e da discordância entre as variantes existentes. 




BIBLIOGRAFIA:

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