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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sincretismo, Legitimidade e o Asno de Ouro de Apuléio - Agathos Athenodoros

SINCRETISMO,
LEGITIMIDADE,
E O ASNO DE OURO DE APULÉIO³

– Agathos Athenodoros


Sou Bruxo e Wiccaniano e entendo que a Deusa ama a diversidade. Caso contrário, haveria apenas uma espécie de ser vivo no planeta. Infelizmente alguns puristas acham que podem impedir o desenvolvimento habitual das sociedades; acham que podem impedir que esta ou aquela religião se renove e se transforme. É possível apontar inúmeras referências entre romanos, gregos, celtas, iorubas e outros antigos sobre esta mistura, mas deixo a melhor para vocês: no Asno de Ouro de Apuléio – um texto do século II –, Lucius diz:

"Rainha do Céu, quer sejas Ceres que nos dá o sustento, Mãe e criadora das cearas (...) que visita agora com freqüência os campos Eleusis; ou Vênus celeste, que, depois de ter nos primeiros dias do mundo unido os sexos contrários, dando o nascimento Eros e perpetuado o gênero humano através de uma renovação eterna, recebe uma agora um culto no santuário de Pafos, rodeado de ondas; ou a Irmã de Febo, que, consolando através de cuidados tranqüilizadores as mulheres em trabalho de parto, suscitou povos inteiros, e que nós veneramos presentemente no célebre templo de Éfeso. A terrível Prosérpina com urros noturnos e com um tríplice rosto, que reprime os ataques das larvas, mantêm fechadas as prisões subterrâneas, erra por aqui e por ali nos bosques sagrados, e a quem apaziguamos com diversos ritos – tu espalhas a tua luz feminina sobre todas as muralhas fortificadas, alimentas com teus rios úmidos as sementes fecundas, e distribui nas tuas evoluções solitárias uma claridade indefinida – sobre qualquer nome através de qualquer rito, sob qualquer aspecto que seja legítimo invocar-te –, assiste-me na minha infelicidade."
 
Ela não pareceu ofendida com a oração de Lucius – um purista argumentaria que essa mistura toda seria ofensiva aos Deuses. Antes disso, ela se sentiu emocionada, respondendo:

"Eu venho ao teu encontro, Lucius, emocionada com as tuas orações, eu mãe da natureza inteira, senhora de todos os elementos, origem e principio dos séculos, divindade suprema, rainha dos mares, a primeira entre os habitantes do céu, modelo entre as Deusas e os Deuses.

O autor do texto, Apuléio, refere–se aos inúmeros atributos e nomes de Ísis, a principal divindade do Culto de Ísis, e possivelmente uma das mais populares religiões do Império Romano. Ele se refere a ela através de seu personagem, Lucius, por nomes e atributos de diversas deusas gregas. E a própria deusa expande seus nomes e significados quando diz

Os cumes luminosos do céu, as brisas salutares do mar, os silêncios desolados dos infernos, sou eu que os governo ao meu bel prazer. Poder único, o mundo inteiro me venera sob numerosas formas, por meios de ritos diversos, sob múltiplos nomes. Os Frígios, primogênitos dos homens, chamam-me Mãe dos Deuses, Deusa de Pessimunte; os atenienses autóctones, Minerva Secropia; os cipriotas, banhados pelas ondas, Vênus Páfia; os cretenses portadores de flechas, Diana Dictina; os sicilianos trilingues, Proserpina Estígia; os habitantes do antigo Eleusis, Céres Ática; uns Juno, outros Bellona, estes Hécate, aqueles Ramnusia. Mas aqueles que o Deus Sol ilumina com seus raios nascentes, com seus raios quando declina no horizonte, os povos das duas etiópias e os egípcios poderosos através de seu antigo saber honram-me com um culto que me é próprio e me chama pelo meu verdadeiro nome, A Rainha Ísis. "[1]

Este texto foi escrito no século II de nossa era por Lucius Apuléio, que era devoto de Isis e fazia parte do culto desta Deusa. Ora, não acho que este estado de culto tenha chegado a este ponto da noite para o dia. E também não sou ingênuo de acreditar que essas foram palavras as exatas da Deusa: quando um antigo desejava legitimar uma idéia ou crença, colocava essa idéia na boca de um figura importante – neste caso, a Deusa Ísis. Entretanto não há nenhum documento que questione este ponto de vista na antiguidade, o que me sugere que essa crença sincrética em Ísis, nestes moldes, fazia parte do senso comum de seus adeptos e que, portanto, para garantir a legitimidade do texto é necessário que ele seja reconhecido como legitimo por seus leitores. De fato, o desenvolvimento do culto é muito anterior ao inicio dos primeiros reinos helenísticos e mesmo a consolidação do Império Romano.

Outro exemplo forte disto é com certeza o inicio do culto de Cybele em Roma, sincretizada desde cedo com a Magna Dea latina, nada mais nada menos que "Grande Mãe” [2].

Entretanto, não é somente Cybele a detentora deste título. Ela é a mais conhecida. Tenho conhecimento de que apenas os iniciados no culto de Athená, chamada de Minerva pelos Romanos, se referiam a Deusa como "Mãe". Diversas outras divindades no Mediterrâneo eram tachadas de Mãe ou Grande-Mãe, tais quais Hera, Afrodite, Rhea, Hécate, Astarte, entre outras. Cada uma delas identificada pelo autor como sendo Isis (nas palavras da própria divindade), mas que a despeito do sincretismo estavam inseridas dentro de uma lógica cultural específica na qual se exige ao menos um elemento de identificação para o processo sincrético. Neste caso, a idéia da Grande Mãe.

Será que este não seria o modelo de paganismo que os Wiccanianos têm em mente, mesmo que não tenham clareza disso?

Outro exemplo histórico recente é a multiplicidade de aspectos entre as divindades dos Panteões da Diáspora Africana. No Candomblé, por exemplo, existem 16 divindades com algum culto regular. Cada uma delas possui o que os adeptos chamam de qualidades. "Fulano é da qualidade tal de tal orixá..." Pois bem: na África, cada uma dessas qualidades possuía culto próprio, com mito e atribuições especificas. Com o "seqüestro" de seus fieis para a América, estes Deuses foram agrupados em grupos e passaram a ser sincretizados com determinados Deuses cujo culto e lembrança dos fiéis eram mais fortes. Ogunté (uma Iemanjá guerreira) é bem diferente de Sobá (a mais antiga das Iemanjas). Oxum, que pode ser conhecida por 16 nomes diferentes é na verdade, 16 deusas cujas características são sicretizadas na figura de uma delas (a qual eu desconheço). E vale lembrar que na Santeria (uma religião cubana semelhante ao Candomblé, também conhecida como La Regla de Ocha) Ewá é cultuada como uma Oxum. Em algumas nações do Candomblé, Xoroque (um Ogum) é sicretizado com Exu. E por aí vai...

Isso nos leva a seguinte questão. Toda religião é interpretação. Ou mais apropriadamente, toda religião necessita de interpretação, quer seja por seus fiéis, quer seja por um clero autorizado a tanto. Quando os mecanismos de interpretação não funcionam, uma crise advém disso. E uma resposta possível para a crise é sempre o sincretismo. Por isso, sincretizar é responder a um problema não postulado pelo cânone ou pela tradição. Outra forma é eliminar a concorrência.

Para refletir, sou sugerir um exemplo histórico:

No fim do século II EC, os cristãos eram perseguidos pelo Estado Romano devido a sua posição ideológica de não cultuar o Imperador. Menos de 50 anos depois, os cristãos – durante o governo de Constantino – queimaram mais de 60 livros considerados não-canônicos, isto é, apócrifos.

"E dai?" – devem estar perguntando todos de athame, foice, tocha e forcado nas mãos... –

Bem, um meio seguro de destruir outro sistema ideológico (seja ele de natureza política, religiosa ou filosófica) é tornando proibido o acesso as suas referencias. No caso dos cristãos, queimar esses evangelhos contribuiu para o fim do gnosticismo que era (para definir bem grosso modo) um curioso sincretismo de cristianismo e culto de mistério com raízes egípcias e helênicas.

No nosso caso, a boa e velha discussão "iniciação x auto-iniciação" serve para deslegitimar as tradições religiosas que em iniciação formal contra àquelas que não acreditam. Aqui a forma de "acabar com as referencias" assume um tom mais retórico e menos embasado de ambos os lados.

Para os iniciados formais, a questão da linhagem como um grande golpe de marketing, sempre coloca em xeque a qualidade do iniciado, mas nem por isso é algo ilegítimo; para os auto-iniciados serve o adágio de minha iniciadora: "o sucesso será sua prova".

Quem possui a verdade, detém o poder. Mas não se enganem: verdades são construídas historicamente. Para alguns de vocês, a bíblia sempre teve quatro evangelhos e não mais de 60; mas, entretanto, não foi essa história que nos contaram. Assim, quando eu vejo essa discussão de "iniciação x auto-iniciação", lanço o meu olhar de historiador ao futuro e pergunto: "quais são os interesses políticos e institucionais por de trás dessa celeuma?”.

Poder, meus caros. Apenas isso... Pensem por um instante como seria o mundo se apenas um de vocês pudesse decidir quem é ou não wiccaniano ou druida ou satanista ou [insira–aqui–sua–crença–favorita]...

E é isso que determinados grupos querem, ao defender seus pontos de vista em detrimento de determinada perspectiva, esquecendo que a Deusa ama a diversidade. Para a nossa religião, todas as duas formas de iniciação são necessárias. Para usar uma metáfora biológica, ambas as formas de iniciação são mecanismos de adaptação dessa religião a contextos sociais diversos. (ta, eu sei que modelos biológicos aplicados à sociologia estão fora de moda desde a Segunda Guerra). Na medida em que iniciações formais garantem a manutenção de uma determinada tradição, elas limitam o acesso à mesma (afinal, não conhecemos muitos gardnerianos...). Todavia, a prática solitária e eclética não dispõe de diversas vantagens (egrégora mágica, apoio de grupo, conhecimento sistematizado, etc.) que um Coven tradicional pode ter. Portanto, eu procuro pensar que tipo de condições sociais permitem essa ou aquela forma religiosa.

Bem, nosso tempo já demonstrou com clareza que tipo de Wicca nós temos. E sabemos com alguma precisão que tipo de bruxaria tivemos no passado. A transmissão da linhagem através da família demonstrou ser a forma mais efetiva de proteger o culto aos Antigos.

Todavia acredito que hoje a Deusa tenha outras formas de proteger seu culto e isso inclui com toda a certeza mídia de massa, auto-iniciações e sincretismos dos mais diversos. Aqueles que alcançarem o sacerdócio, realmente terão passado por inúmeros testes sutis, confirmando o dito o "sucesso será sua prova". E é por essas que eu não me preocupo e nem posso me preocupar com a qualidade deste ou daquele iniciado, pois a experiência é maior que iniciação formal.

Outro dia, eu estive pensando numa imagem muito sugestiva: somos (como iniciados) instrumentos da Deusa. Então imaginei uma mulher numa cabana com seu altar e muitas estantes. Em cada canto dessa cabana há um instrumento: um athame, um bastão, um livro, a própria mesa de cada altar... E me veio à cabeça ela própria nomeando cada instrumento, chamando este athame de iniciado fulano, aquele bastão de sacerdote beltrano. Ocorre-me agora que cada mesa de altar é um Coven, uma tradição... E que às vezes ela coloca alguns instrumentos juntos porque ELA QUER AQUELE ALTAR DAQUELE JEITO!

E do mesmo modo que nos temos alguns instrumentos que não ficam em nosso altar – por ex.: aquele vaso de planta dedicado às fadas do inverno ou um athame específico, usado para guardar a entrada da casa, existem bruxas/os – instrumentos Dela – que também trabalham sozinhos. Alguns "instrumentos" foram Consagrados segundo regras específicas (Lua num determinado signo, regras de uma tradição, etc.) e outros foram produto de pura intuição. Instrumentos tem sempre um nome, seja teu Cálice de Bruxo, seja o sacerdote "Zezinho"; e quando ela decide mudar o(s) altar(es), Ela pode rearranjar tudo segundo Sua vontade. Assim, como para cada instrumento nosso cada instrumento Dela.

Essa metáfora traduz, portanto toda a discussão acima. A diversidade é regra na natureza e se traduz na multiplicidade de expressões da vida. E do mesmo modo, quando tratamos de cultura e neste caso especifico, de religião – de numa religião inspirada na natureza – temos que supor que sua diversidade reflete apenas um mecanismo de “seleção e sobrevivência cultural” (na falta de termos melhores), quer seja agora ou na antiguidade, quer seja durante a diáspora africana, quer seja em cada indivíduo, quer seja em cada tradição.





[1] Apuléio, O Asno de Ouro. XI 2-5.
[2] Tito Lívio, História de Roma. 29.10-14.
[3] Texto retirado com permissão do autor de: http://www.caminhosdassombras.org/agathos_sincretismo.htm

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